quinta-feira, novembro 30, 2006

TERCEIRA LAMENTAÇÃO


Injustamente, Senhor, injustamente
a fúria do teu açoite
me corta pela raiz...

Quando amassavas o barro e me geravas
tinhas nas mãos divinas que sujavas
a grandeza da força que me davas
para fazer o que fiz...

Nessa hora do teu parto
a minha fome era a tua...
E os sonhos e os desejos,
sonhados e desejados
nos quatro cantos fechados
da minha noite sem luar nem lua,
eram teus...
Eu ainda não era o Homem,
e tu já eras o Deus...

Era simples e bonito:
mudavas o curso ao rio
antes de o rio nascer;
e depois tinhas um rio
sem este ar de desafio,
sem este aspecto sombrio
que vim a ter...

Tinhas o homem castrado
que a tua doutrina tem...
O macho desnaturado
com a mulher a seu lado
à espera do arranque desejado
que não vem...

Tinhas outro, menos eu,
que não posso andar no céu
de pés colados no chão...
Tinhas outro, que não era
nem a mais humilde fera,
nem a mais falsa quimera
dum meu irmão...

tinhas quem tu quisesses, menos quem
conhece os vícios que tem
mas sabe que saiu de sua Mãe
homem vivo,
para negar a qualquer,
seja Deus, seja mulher,
um simulacro sequer
de amor passivo...

Porque, senhor, onde chego
chega o fogo da fogueira...
Ardo e dou calor à Vida
para me aquecer a Ela...
E chego a ter nos braços a donzela,
só porque a minha paixão é verdadeira!...

E não te peço perdão de ser assim.
Sou tal e qual como vim
de teu celeste jardim
para as selvas brutais da Natureza...
Não tenho culpa de a Obra
cair, por causa da Cobra,
das tuas mãos sem firmeza.

Não tenho culpa de nada!
Tivesses a mão fechada
ou aberta de outra maneira...
O que sou é o que serei,
contra ti ou qualquer lei
que não queira...

Atiro o salto mortal
e concentro a força toda
no assombro da multidão...
E morto ou vivo apareço
dono de quanto mereço,
e a valer o justo preço
que me dão...

Conquisto a Vida e o Pão de cada dia!
Bebo Sol quando há Sol, e noite quando há noite,
e grito quando a voz do teu açoite
fende o meu corpo em dois e o deixa inteiro.
E quando junto do muro me ajoelho,
quebra-me as pernas o costume velho
de te sonhar às vezes justiceiro...


Miguel Torga, in O outro Livro de Job

ver também O Livro de Job em www.religa.blogspot.com, arquivo dez 2006

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